Você está fazendo isso errado
31/01/2018Um dia desses, lendo um texto sobre como a internet alterou nossos hábitos (sei que não tem nada a ver com muaythai, mas chegaremos lá), me peguei pensando sobre o que realmente significa ser saudável e me lembrei de uma palestra em que fomos perguntados: você acha que um atleta precisa levar uma vida saudável?
A resposta óbvia foi um claro e sonoro SIM! Assim, em caixa alta, gritado a plenos pulmões. E o sorrisinho no canto da boca do palestrante já denunciava o tamanho do erro naquela resposta.
Pare para avaliar o que estritamente significa a palavra “saudável”. Se você fizer a busca no Google ele te dirá o seguinte:
Saudável
1. que é bom para a saúde; salutar, higiênico.
2. que tem ou revela saúde física e/ou mental, espiritual.
3. que proporciona tranquilidade, bem-estar.
4. que beneficia; positivo, favorável, benfazejo.
A primeira conclusão errada que temos é a de que ser saudável é algo relacionado exclusivamente ao físico. Basta comer bem, se exercitar, dormir bem. Pronto! Aí está a receita do sucesso. Mesmo que isso fosse verdade, primeiro é preciso lembrar que atletas estão sempre no seu limite. O nível de esforço físico diário de um atleta é extremo, e sem descanso e alimentação proporcionais e adequados, com certeza não poderá ser considerado saudável.
Um atleta de alto nível deveria dormir pelo menos 8 horas por dia (ou mais dependendo do nível de desgaste físico), outra opção é tirar vários cochilos ao longo do dia para recarregar a energia. Você tem esse tempo disponível para dormir? Além disso, é necessário se alimentar adequadamente (o que vai variar de acordo com sua composição física e rotina), nos horários corretos, e em alguns casos PODE ser necessária suplementação alimentar. Não vamos nem entrar no tópico cortar peso, porque aí desanda de vez.
Mas levar uma vida saudável também significa ter equilíbrio mental e emocional. E se você não teve nenhum tipo de descontrole emocional durante as preparações para a luta, ou você é o melhor ser humano do mundo ou você provavelmente não estava fazendo isso direito. Seja quando quis chorar de dor ou de frustração, seja quando não aguentava mais cortar peso, seja quando estourou com alguém porque estava com fome ou exausto, seja porque o relacionamento entre treinador e atleta às vezes fica tenso; de alguma forma a experiência de ser atleta é intensa ao ponto de ultrapassar a linha do que é saudável.
Isso sem falar em como o comprometimento com o treino acaba minando hábitos saudáveis que uma pessoa “normal” tem, como a vida social ou mesmo alguns deslizes prejudiciais que ajudam a construir uma vida saudável ao longo do tempo. Eu explico. Primeiro, o ritmo de treino para uma luta é tão exaustivo em certo ponto, que você não terá tempo para uma vida social. E quando tiver tempo, é possível que não tenha disposição. Se você é um atleta profissional que depende de diversas lutas seguidas para se sustentar, provavelmente terá que fazer escolhas como não ser mais tão rigoroso com sua rotina de treino e dieta ou manter um relacionamento saudável (olha a palavra aí de novo) com amigos e família.
Em segundo lugar, às vezes faz bem para sua saúde mental cometer um deslize. O açúcar, por exemplo, é prejudicial para sua dieta, é altamente viciante e se você tiver que tirar peso, é o inimigo número um, mas tente manter uma dieta sem nada de açúcar por dois meses. Comer um docinho sem exagero esporadicamente é prazeroso, pode ajudar a aliviar aquela tensão (as mulheres sabem do que eu estou falando) e a manter o foco da sua alimentação saudável, se tratado como uma recompensa. Esse é apenas um exemplo, mas você entendeu onde quero chegar, certo?
É por isso que tantos extrapolam entre uma luta e outra, ou entre uma temporada e outra, e experimentam períodos de abusos extremos quando não precisam manter a rotina de treinos tão intensa ꟷ o que, por sinal, também não é saudável.
Vida de atleta é rígida, extrema e não é para qualquer um. O que estou dizendo afinal, que não deveríamos ser atletas? Ou que não devemos ser tão rigorosos com treinos e dietas? Não, especialmente se você quiser ser um atleta de ponta, isso será necessário sim! O que é necessário é que haja algum equilíbrio nessa equação toda.
Seu corpo é sua ferramenta de trabalho, muitas vezes é o sustento da sua família e, mais que isso, quando você não puder mais lutar você terá de viver com o que sobrar dele de acordo com a conduta que você está escolhendo ter agora. A forma como você o trata provavelmente influenciará o tempo que você terá para desfrutar dele e em que nível de eficiência fará isso.
Quer lutar até os 40 anos? Ótimo! Será que você fará isso treinando intensamente, comendo bolacha recheada, miojo e refrigerantes, e dormindo mal? Pouco provável.
Infelizmente o nosso esporte não tem a estrutura necessária para garantir ao atleta todo o suporte necessário para chegar realmente a um nível de excelência profissional. Hoje, é impensável um atleta de muaythai ter o mesmo que teria um lutador do UFC, com equipe profissional cuidando de alimentação, preparo físico, recuperação, suplementação, sono e ainda pagando o suficiente para que ele lute apenas a cada seis meses e tenha realmente tempo suficiente para se recuperar de uma luta. E a realidade dos nossos atletas quase sempre não permite ter um plano de saúde ou patrocínio nem que seja de uma farmácia para comprar esparadrapo para fazer a mão e um Dorflex para o dia seguinte. Isso é óbvio. Mas o básico que é se alimentar bem, abdicar do Netflix para dormir um pouco mais cedo, fazer o tempo de descanso correto depois de sofrer impactos extremos na cabeça, se recuperar devidamente de lesões, e cortar peso sem grandes loucuras (ou escolher uma categoria realmente possível de manter), isso dá para fazer. E todo mundo sabe que o sistema de saúde pública do Brasil é terrível, mas quando foi a última vez que você fez um exame de sangue?
A situação do atleta de muaythai nunca vai melhorar enquanto o lutador tiver que não só pagar para subir no ringue, como praticamente mendigar. Enquanto muitos dos que têm o poder de realmente ajudar o esporte a crescer priorizarem o benefício próprio e a exploração financeira de atletas. Enquanto você for obrigado a fazer por amor o que te custa dinheiro e deveria pôr sua mesa. Então já que você já é obrigado a sacrificar seu tempo, a convivência com a sua família, seu divertimento e seu dinheiro, preserve pelo menos seu corpo. Seu futuro agradece.
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